Fiz esta proposta para uma amiga muito querida, de uma amizade que já ultrapassou 3 décadas. quer ser minha marida? mesmo que pareça um pedido de casamento, não foi sobre isso.
Vou contar as razões que motivaram esta pergunta que, num primeiro momento foi um tanto surpreendente, até pra mim. porém, enquanto tentava brevemente expor as razões da proposta, percebi sim que valia a pena pensar e aprofundar mais o assunto. e, enquanto escrevo, já estou trabalhando em uma primeira modelagem para a “proposta”, ou seja, apesar de parecer inusitada, as motivações já existiam em um âmbito mais profundo e difuso e, depois de assentadas, devem se tornar um documento real.
Um pouco de contexto: o número de mulheres solteiras aumenta a cada ano que passa, segundo minhas pesquisas nesta vasta rede da internet. por exemplo, no Brasil, conforme o IBGE (2023) o grupo das pessoas solteiras contava com 81 milhões, ultrapassando assim o grupo dos casais contabilizados em 63 milhões. não temos o numero exato de solteiras, mas considerando que as mulheres são a maioria da população brasileira, representando 51,5%, podemos inferir que destes 81 milhões, ocupamos mais da metade das cadeiras.
Por culpa ou responsabilidade do algoritmo, chegaram muitos artigos e textos sobre o tema “mulheres solteiras”. recentemente um artigo no El Pais chamou minha atenção Por qué hay más mujeres solteras (y felices) en España que vai contando de uma situação “nova” da mulher que escolhe estar solteira, escolhe ativamente não fazer parte de um casal.
Com todos os prós, contras, zonas nebulosas de ser solteira e demais questões pertinentes, mas que não cabem nos contornos que quero trazer para esta reflexão, meu ponto é: estar sozinha na hora de tomar grandes decisões.
Um pró: é um facilitador, não preciso convencer ninguém, muito menos abrir mão de algo que quero por outro/a (e talvez seja só isso, mas é um grande pró, com certeza)
Por exemplo, quando reformei minha casa não só pude mas tive que (ênfase no ter que) decidir absolutamente TUDO sozinha. ainda que acompanhada por um arquiteto, no final do dia, era eu quem deveria escolher o revestimento do banheiro, o formato do cobogó, a cor do azulejo, as luminárias, quantas divisões teriam os armários, quantas gavetas. eu gostaria de ter tido companhia. foram compras erradas, algumas vezes responsabilidade minha, outras de quem não soube especificar o produto. e, muitos aprendizados temporários, creio que boa parte das minhas descobertas no mundo das obras já ficou guardado em local seguro e, atualmente, com acesso limitado no meu sistema cerebral. e, você que me lê e já passou por uma reforma pode estar tendo calafrios ao lembrar de como é passar por este momento na vida.
mas Rach, o que a reforma tem a ver com a proposta? ela só serviu de exemplo de tomada de uma grande decisão (formada por mil mini decisõezinhas) que eu já não quero mais fazer sozinha, na minha próxima obra.
E, veja bem, escolhi uma decisão grande que é o copo meio cheio, mas sabemos que as decisões grandes apresentarão mais copos meio vazios. pra este texto, vamos de copo meio cheio?
Pois bem, a minha marida, por falta de criatividade minha e por não ter um nome para esta pessoa com esta função na vida, é que a minha amiga, de agora em diante, será a pessoa com quem eu possa compartilhar as escolhas grandes, as decisões que tem impacto, aquelas que a gente vai, necessariamente, carregar por mais tempo ou que vão ficar por aqui depois que a gente se for. ter acesso à documentação sensível da vida, aqueles documentos que a gente sempre pensa em salvar em caso de incêndio, conversar sobre as decisões que podem estar definidas em diretivas antecipadas de vontade (dav), ter acesso às definições sobre o testamento (os 50% disponíveis conforme nossa legislação atual) e, por último mas não menos importante, ser responsável por acessar minhas senhas, contas de e-mail, bancos, redes... tudo pensando não só no fim desta jornada mas em algum percalço que pode ocorrer no caminho.
A “proposta”, até mesmo diferente de como pensei, de como e quando ela apareceu, teve uma construção não exatamente linear e organizada. entendi que foi sendo revelada, construída em conversas que foram acontecendo ao longo dos últimos anos, com várias pessoas em diferentes momentos. acredito também que ela tenha tomado uma forma mais coesa, com um pouco mais de definição quando do acontecimento da pandemia. o tema que une estas conversas todas, é a morte, o fim da vida, as possibilidades que temos atualmente de decidir previamente o que será feito de nosso patrimônio disponível, antecipar decisões, definições e outras coisinhas que podemos não ter a chance de expressar.
Se eu morrer amanhã, quem vai cuidar e ter algum tipo de relação com o que tenho em minha casa? quem poderia ficar com os meus livros? quem vai poder apagar minhas contas nas redes sociais? hoje não tenho respostas para estas perguntas, mas a certeza que tenho é quem ficar, terá um considerável trabalho para resolver uma série de mistérios sobre senhas, especialmente elas. qual é a senha daquela rede, daquele banco, daquele celular... um brilhinho: as minhas senhas, no geral, não são as que anotei no papel, nem mesmo aquelas que estão guardadas em um mail que só serve para guardar as senhas. eu “criei” um sistema que a senha pode ser uma das 3 senhas que estão próximas à que está listada como senha. ou seja, acontece de eu, a criadora do sistema me confundir com a “metodologia”, então imagine outra pessoa garimpando tudo isso e desconhecendo as nuances das minhas escolhas. um bom exemplo, a senha deste computador, de onde escrevo este texto, não está em nenhum outro lugar a não ser no meu coração <3 (não consegui colocar as mãozinhas formando um coração mas pense nelas, faz mais sentido) 😂 😂
E, você que lê pode pensar assim como eu: me preocupa realmente que alguém tenha trabalho depois da minha morte? sinceramente, não. ou melhor, 99% não. como uma mulher solteira, não tenho herdeiros diretos.
Mas sei que você, prestando atenção, percebeu que sobrou um único 1% e, este 1% é o que me importa: a vida restante da minha cachorra (hoje é a Ninna, mas sempre terá um cão ou cã, esta certeza eu tenho). no fim, é por conta deste 1% que comecei a me mobilizar para ter uma “marida” até o final deste ano.
Porque eu quero saber quem pode tomar conta do serzinho de 4 patas que ficará, porque eu quero que esta pessoa tenha recursos para isso. a ideia central é deixar a pessoa responsável para cuidar da cã com todas as condições necessárias para acompanha-la até a sua partida, da melhor forma possível. esta é a minha preocupação, este é o meu 1% que está gerando todo este movimento.
Ah, um spoiler, minha amiga não aceitou, não sei se porque achou estranho, se não quis esta responsabilidade ou se achou a ideia fora de lugar. justo, afinal foi uma oferta feita no meio de uma conversa, sem ter uma “proposta” efetiva, sem plano, sem nada. foi, naquele momento, simplesmente uma ideia jogada, que, com um pouco de reflexão está ganhando forma, e estou gostando.
Então, mesmo que eu não tenha conseguido encontrar uma “marida” sigo com esta questão que virou uma tarefa. e sim, sinto falta de ter alguém com quem discutir as questões difíceis da vida, sim, eu faço terapia há anos, mas não será minha terapeuta a ter este papel. e, não que não seja possível fazer isso com várias pessoas, mas eu quero algo mais estruturado, algo que seja uma conversa aberta, longa, espaçada, que seja mais parecida com a construção de um caminho. não que seja numa mesa de bar ou mesmo num café que será muito próximo de um conselho, uma sugestão, uma possibilidade. eu quero burocratizar esta parte da minha vida.
E, a cada dia que passa, pois já passei da metade da vida, acredito também que a escolha será por uma amiga, alguém que seja de minha convivência íntima. e, ainda acreditando que milagres aconteçam e eu tenha um companheiro, ainda assim, optarei por uma amiga. afinal, quem chegar agora já perdeu metade do filme e, certamente, me sentirei mais confortável para decidir as questões necessárias para uma boa morte, para costurar meu inventário final de decisões com alguém com quem compartilhei mais vida e, assim poderei minimizar as emoções para quem ainda vai seguir por aqui.
(primeira imagem é de Markus Winkler, a segunda imagem é de Heather, ambas Unsplash)
que texto legal e que ideia legal! esses dias eu entrei numa crise gigantesca porque simplesmente não soube como preencher o campo "contato de emergência" no formulário da minha nova -- veja bem -- analista. buguei, tô desde então falando nisso com ela, claro, especificamente sobre a parte que você trouxe aqui que é ter que perguntar pra alguém que não necessariamente ocupa esse papel ~naturalmente (risos) se a pessoa aceita ou não aquilo. no tanto que eu penso sobre relações, acho esse um ponto bem crucial: não supor que alguém queira performar, por mais que eu odeie essa palavra, um determinado papel, só porque Sempre Foi Assim.
adorei :)
"Eu quero burocratizar essa parte da minha vida". Gente, que rico isso. E potente! Uma verdade que ninguém assume! Realmente, uma marida é algo muito melhor!!!